Roteiro pelo Chile

Leo Ribeiro Mundo Roteiros

Uma viagem nunca depende apenas dos acontecimentos externos, senão um conjunto de acontecimentos internos que determinam cada passo e a maneira como os sentimos. Vislumbrando as paisagens, sempre com os olhos da nossa própria personalidade, distinguimos, percebemos, discernimos e realizamos o que estamos assistindo, e, assim, cabe dizer que passar pelo Chile foi uma mistura de sentimentos.

O primeiro que me vem à mente relatar é a impressionante diferença que sentimos ao atravessar as cordilheiras. Para atravessar, conseguimos três caronas e fizemos 100km em um dia, indo de Villa la Angostura à Entre Lagos em algumas horas. Cada uma das aduanas tem sua particularidade, e aí já se vê a mudança. Eu realmente não sei dizer o que um “muro” de vários metros de altura e uma travessia de quilômetros pode causar de tão fantástico, mas a dessemelhança entre a Argentina e o Chile é enorme.

Primeiro, o contato cultural, devido a dificuldade que é a travessia, para os povos originários, deve ter sido historicamente complicada; são muitas montanhas, além do frio, que separa a patagônia chilena da argentina, e, assim, as influências que poderiam causar alguma proximidade entre os dois países acabam se tornando quase que sutis – pra não dizer “impossíveis” – a olhos nus. A maneira como o povo chileno vive, a maneira como se relacionam é absurdamente diferente, e não se precisa de muito esforço pra notar a distância que se encontram mesmo sendo países vizinhos. Enquanto na minha percepção o argentino é mais fechado, mais “europeu” por assim dizer, mesmo com um senso de fraternidade bem vivo e acolhedor, o chileno se torna ingenuamente aberto ao outro, caloroso, apesar de encarar o outro com maior desconfiança. Se vocês já foram ao Chile alguma vez, em suas memórias vão encontrar um povo mais amigável, mais disposto a te ver; nesse ponto, eles se tornam até mais educados e você terá boas relações com cada um deles. E aí entram dois fatores que quero pontuar brevemente:

Eu considero o povo chileno mais próximo de suas raízes: um dos casos que me impressionou de cara é levarem a luta do povo Mapuche como algo não apenas cultural, mas político, como processo de nacionalismo chileno e independência da dominação europeia, não apenas na região como no país inteiro. A luta por terras, principalmente na região de Temuco, é bem forte – a luta causa chagas; os mapuches queimam escolas, causam incêndios florestais, etc, a fim de que o governo possa olhar e considerar seus direitos como relevantes. As terras, segundo os moradores da região, há tempos atrás, eram mapuche. As conquistas europeias no passado, dizimando milhares de originários, fez com que a região estivesse sobre domínio espanhol e, depois, capitalistaminha intenção aqui é relatar o que me disseram e o que vi, ao invés de levantar bandeiras e me voltar a ideais*. Muitas indústrias têm se aproveitado da patagônia, retirando e se apropriando das terras e riquezas que se é considerada, pelos Mapuches, território de seu povo – há inclusive algumas notícias internacionais que enfatizam o agravamento desses confrontos nessa região (inclusive e principalmente na Argentina). Isso causou uma série de confrontos entre os mapuche e o governo, e aparentemente grande parte da população chilena reconhece a luta e os ideais que a motivam; também, muitos chilenos fazem parte desse confronto, responsabilizando o governo chileno pela desigualdade e pela venda das terras ao interesse do monopólio estadunidense. Também, devido a essa proximidade chilena aos originários, o Chile tem seu idioma e folclore bastante influenciado por essa característica indígena, com uma tonalidade bem peculiar e palavras e modismos que tornam o idioma chileno bem diferente dos demais da América-Latina.

Em contrapartida, tanto a ditadura militar na Argentina quanto no Chile causaram muitas feridas, e feridas profundas. Nesse ponto, eu não sei bem o que dizer sobre o que se passou no Chile de Pinochet, porém, como a população chilena estimada é a de 18 milhões de pessoas, entre brancos e mapuches, a crueldade e repressão do governo militar teve muita influencia no comportamento do povo e o deixou mais desconfiado e fechado em si. Enquanto a gente pode considerar o argentino como bairrista, apesar do chileno não o ser, é definitivamente um povo mais encerrado em si, e sua proximidade a alguém de fora é, ainda, mais superficial – em termos de intimidade me refiro. Enquanto brasileiros, fomos obviamente tratados de maneira mais espontânea e alegre, e o chileno tem uma impressão muito positiva do nosso país; algumas barreiras naturais, dessa forma, foram quebradas, e, culturalmente falando, nos sentimos mais próximos do chileno do que dos demais países que conhecemos, porém admito que as poucas relações que tive com argentinos foram de uma proximidade ainda maior e mais fácil de ser conquistada.

Me refiro a esses dois pontos como os mais presentes durante a minha passagem no Chile porque, de qualquer forma, apesar de a natureza chilena ser surpreendente, eu considero que o povo é aquele que alimenta a alma de qualquer nação. A junção de seus pensamentos e interesses causam no ar uma diferença muito notável de como aquele país e suas paisagens se expressam e interagem contigo, e, de forma muito nítida, nós tivemos na nossa rotina de mais ou menos três meses de experiência um comportamento bem diferente do que o observado nos outros países. É um país que te oferece uma certa tranquilidade, e a gentileza com que os nativos nos tratam nos dá um ar de graça e faz com que nossa passagem por lá seja relevante. É como que se tudo pudesse ser contemplativo – tanto as paisagens como a sociedade em si -, e isso devido a influência do espírito apaziguador que existe em meio a tanto caos.


Assim como nos foi bom reconhecer no povo argentino a organização e a atividade política militante que os deixa mais próximos de si, levando em suas costas a bagagem de uma história de luta e de patriotismo, e nos uruguaios a sua postura simples e o sentido de nação que carregam no peito, reconhecer no povo chileno a busca por sua identidade, pela moral e ética, levando em consideração o valor histórico e seu vínculo com a pachamama, manifestando seus ideais e re-estabelecendo sua conexão com suas tradições, foi o que de mais expressivo nos tomou durante nossa estadia por lá além da curiosidade inata de ver nas inter-relações o sentido comum de humanidade que nos une verdadeiramente. Espero, a partir disso, poder dissecar a experiência de viagem por algumas das cidades que conhecemos e pontuar brevemente o que de melhor e mais curioso nos aconteceu durante.

em breve, a segunda parte do relato sobre nossa ciclo-viagem pelo Chile.

Leandro Ribeiro – Distropya.com