Maria de Déa foi chamada de Maria Bonita no dia em que foi morta

Fábio Cardoso

Após dois anos de mergulho na vida de Maria Gomes de Oliveira, ou Maria de Déa, ou Maria Bonita, a jornalista Adriana Negreiros juntou todas as informações e colocou tudo no livro que leva o título de ‘Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço’, lançado pela editora Objetiva.

Ao contrário do que possa parecer mais algumas histórias de coragem e covardia, de medo e de valentia, o livro tem uma narrativa exclusiva do sofrimento das mulheres que acompanhavam o bando de Lampião, uma lenda nordestina que é herói e vilão ao mesmo tempo.

Adriana Negreiros escreve sobre o cangaço, mas sobre o ponto de vista das histórias das mulheres que viveram no bando de Lampião, entre elas, Maria Bonita e Dadá. Segundo a jornalista/escritora, em tudo que teve acesso, percebeu que os textos escritos negligenciavam a participação das mulheres e, principalmente, atenuavam a violência praticada contra elas.

Em entrevista exclusiva concedida ao Turismo em Foco, a jornalista fala sobre o livro e detalha alguns momentos do cotidiano do bando de Lampião, inclusive, revela que Maria de Déa, só passou a ser chamada de Maria Bonita após ser morta pela volante (policiais) na emboscada em Angico (ES).

– Maria Bonita sempre foi fiel a Lampião?

Conforme minhas pesquisas, Maria de Déa nunca traiu Lampião.

– Ela apoiava a morte das mulheres que traiam os cangaceiros do bando, mas não se incomodava em ser adultera. Como trabalhava isso?

Há indícios de que Maria de Déa tenha tido um amante quando era casada com o sapateiro Zé de Neném. No entanto, não há nenhum registro de que tenha cometido adultério enquanto estava no bando. Maria apoiava a morte de mulheres que traíam seus companheiros, conforme previa um rígido e extremamente machista código de conduta que regia o bando. Isso demonstra, a meu ver, o quanto seres humanos são complexos e imprevisíveis.

– Como você traduziria a personalidade dela?

Maria de Déa era uma mulher forte, que não se importava muito com o que diziam a respeito dela. Tinha bom humor, era espevitada e corajosa – é preciso muita bravura para escolher ser cangaceira.

– Você acha que a morte dela teria sido necessária? Isto é, o alvo da volante (polícia) eram os cangaceiros e sabiam que as mulheres eram vítimas do grupo. Não poderiam ter poupado a vida dela, ou ela passou, pelas histórias – distorcidas ou não – a ser alvo também?

A polícia tratava todos os integrantes do bando como bandidos. As cangaceiras eram vistas pelas forças oficiais como criminosas, ainda que estivessem no bando, muitas vezes, contra a própria vontade, fruto de rapto. A meu ver, nenhuma morte ali era necessária, nem mesmo a de Lampião. Todos eles tinham direito a defesa. Sou rigorosamente contra a pena de morte.

– É dela a letra da musica “Olê, mulé rendeira, olê mulé rendá, tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar… 

Não. A canção era entoada pelo bando de Lampião durante invasões a cidades, antes mesmo da entrada das mulheres no grupo, e é de autoria desconhecida. Inclusive, há inúmeras versões diferentes para a mesma música.

– Maria Bonita tinha ascensão sobre as outras mulheres do bando? 

Maria era a cangaceira mais importante, a mulher do Capitão, e dessa forma tinha seus privilégios – por exemplo trabalhava menos do que as outras. Algumas das moças, como Sila e Neném, eram próximas de Maria, mas não lhe deviam obediência cega. Outras, como Dadá, tinham verdadeiro pavor de Maria Bonita. Para a mulher de Corisco, Maria era chata, metida a besta e convencida.

– É verdade que o apelido dela (Maria Bonita) foi-lhe atribuído na periferia carioca?

Não. Há duas versões para a origem do apelido. Pela primeira, ele seria uma invenção dos jornalistas do Rio de Janeiro. Pela segunda, uma “homenagem” dos soldados que participaram da chacina de Angico. A única certeza que se tem sobre o assunto é que a mulher de Lampião morreu sem jamais saber que seria conhecida como Maria Bonita.

– Existe alguma relação da força dela e o título dado às paraibanas, de “Paraíba masculina, mulher macho sim senho”…?

Acredito que a relação não seja com Maria, mas sim com as nordestinas, de forma geral, tidas como mulheres fortes e valentes. E identifico nesses versos, infelizmente, um forte componente machista: a sugestão é a de que, para ser forte, a mulher deve ser “macho”, como se a valentia e a força fossem atributos que devessem ser buscados em um homem.

– O que você gostaria que os leitores, principalmente, as mulheres pensassem do movimento de Lampião e a relação com as mulheres? 

Gostaria que os leitores percebessem que, no cangaço como em muitos outros episódios da nossa história, as mulheres estão entre as principais vítimas da opressão – e, se isso parece chocante, deve-se ao fato de que, historicamente, nossas vozes têm sido silenciadas e desqualificadas.

– Qual a sua interpretação e qual seria a mensagem do livro, tanto para as mulheres quanto para os homens?

A pesquisa para este livro me fez perceber o quão fortes são as estruturas de opressão contra as mulheres – e o quanto elas tendem a ser ignoradas por todos os lados. Desejo que a leitura do meu livro contribua para jogar luzes sobre essas estruturas, de maneira a nos fazer perceber que a luta pela igualdade deve ser permanente e corajosa, porque sempre haverá uma correnteza em sentido contrário disposta a nos enfraquecer e nos ridicularizar.

– Temos algum tipo de cangaço urbano nos dias atuais? 

Não. Considero anacrônico tratar por cangaço o que ocorre nas grandes cidades nos dias atuais. O cangaço é um fenômeno do banditismo rural que teve seu ápice entre os anos 20 e 30. Até podemos estabelecer paralelos entre o comportamento dos cangaceiros e dos traficantes e a relação destes com as forças oficiais, notadamente no que se refere à ostentação e à corrupção, mas a comparação não vai muito além disso.

– As mulheres conseguiram se libertar dessa opressão?

De maneira alguma. Basta ver os índices de feminicídios, as estatísticas sobre nossos salários em relação aos dos homens e a reduzida presença de mulheres na política. A boa notícia é que estamos vivendo um momento interessante, de forte conscientização quanto à importância do feminismo, e quero crer que o mundo será um lugar melhor para as mulheres quando minhas filhas forem adultas.

Fábio Cardoso

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